Valores da Comunidade de doulas do fim da vida
Estamos constantemente a criar a realidade em que acreditamos. O mundo que vemos à nossa volta é um espelho daquilo em que cada um de nós acredita, mesmo que, muitas vezes inconscientemente.
A forma como vemos e sentimos a vulnerabilidade, a doença, o envelhecimento e a morte espelha-se através da forma como a sociedade responde a este sentir. Como está a educação e a saúde em Portugal? Os portugueses (e foco-me aqui apenas em Portugal) têm um sistema realmente educativo, informativo e empoderador da sua real expressão das suas necessidades, direitos e deveres? Ou, este sistema, atua, pelo contrário, fazendo precisamente o oposto?
Os portugueses são, na sua generalidade, pessoas conscientes emocionalmente e intelectualmente, que conseguem expressar livremente quem são e o que sentem, individualmente, e estar, também, ao serviço da rede da sua comunidade mais abrangente? Como nos servimos e cuidamos individualmente e coletivamente?
Como estão a ser acompanhadas as pessoas mais vulneráveis, de diferentes idades? Como estão a ser cuidadas as pessoas na sua doença? Como estão a ser acompanhadas as pessoas no seu envelhecimento e no final da vida?
A sociedade atua numa real comunidade compassiva ou não?
Será que vivemos uma real liberdade ou apenas uma ilusão daquilo que gostaríamos que fosse mas que na realidade está longe de ser?
Olhar para a realidade como ela é pode ser aterrador, muito doloroso e até traumático. Mas só assim podemos estar plenamente no mundo, cumprindo-nos, amando-nos e amando o mundo de volta.
Como podemos falar de liberdade se a grande maioria das pessoas mais velhas não tem a opção digna, humana, básica e fundamental de VIVER com amor, em amor e podendo expressar aquilo que deveria ser uma época de grande demonstração da sabedoria acumulada ao longo da vida? Os nossos mais velhos sentem-se anciãos ? A nossa sociedade prepara-nos para sermos anciãos? Como nos sentimos no nosso papel de mais velhos? Sábios (que não está relacionado com o papel e “canudos” educativos que podemos ter na sociedade mas sim com a nossa capacidade de estar ligados à vida e a tudo aquilo que aprendemos e vivemos com ela para depois a podermos partilhar com os mais novos) ou , antes pelo contrário, desperdício alimentar social?
Como podemos falar de liberdade se a grande maioria de pessoas em grande vulnerabilidade (pelas mais diferentes razões) não têm as condições humanas básicas e fundamentais para Viver, Amar e ser Amado?
Como podemos falar de liberdade se a obra do nosso sistema educativo tem como base a sobrevivência, as notas, os números, a competição, e não os valores humanos mais fundamentais: a compaixão, o amor, as relações, as emoções, o respeito pela nossa individualidade e a nossa relação com a comunidade, com a natureza, etc...?
Como podemos falar de liberdade se o nosso sistema de saúde, e grande parte dos seus profissionais (voltando a relembrar o nosso sistema educativo neste ponto na área da saúde), atua com base na exclusividade da doença aguda e a sua cura, sem olhar para a doença crónica irreversível e para a morte? Volto a colocar a questão: Como estão a ser acompanhadas as pessoas com doença cronica e irreversível? É muito grave podermos chegar à conclusão que estão a ser acompanhadas com muito pouca dignidade e por pessoas sem desenvolvimento humano, educativo e cientifico naquilo que é uma área muito nobre da humanidade e da medicina: os cuidados paliativos.
É esta a realidade que criamos. Todos nós.
É muito bonito sentirmo-nos tristes e revoltados quando são noticiadas situações de maus tratos para com as pessoas mais vulneráveis. Será esta uma situação pontual? Acho que todos sabemos que não. Todas estas reflexões que trago são referentes a situações de abuso, violência e maus tratos que todos nós podemos testemunhar no nosso dia a dia. E escolhemos não fazer nada.
Somos violentados todos os dias e deixamos.
Quando se referem a Eutanásia como a morte assistida fico muito zangada. Acredito ser um ludibriar intencional de criar uma realidade ficcional bonita. Uma ação publicitária baseada na medicina curativa e patriarcal, que onde não há espaço para os vulneráveis, para a doença crónica, para o envelhecimento (inclusivamente já se tentou classificar o envelhecer como uma doença).
A eutanásia é o “ato intencional de proporcionar a alguém uma morte indolor para aliviar o sofrimento causado por uma doença incurável ou dolorosa, mediante pedido expresso da pessoa doente.” Todos devem ser assistidos na sua vida e morte. Ninguém deve morrer sozinho e muito menos com sintomas descontrolados.
Volto a colocar a questão: estão todos a ser assistidos na sua fase final de vida? Esta realidade está longe se ser uma verdade.
Não sou contra a eutanásia. Mas acredito, mais uma vez, que criamos a nossa realidade. A realidade que sinto e vivo dentro de mim é uma realidade diferente daquela que se apresenta no mundo, em Portugal, onde existe respeito por todos os seres humanos, em todas as suas fases de vida, incluindo, as suas fases mais vulneráveis.
Se acreditas que não és merecedor de amor quando estás vulnerável, a envelhecer, com alguma doença crónica, então é essa a realidade que irás criar. Esta poderá até parecer uma crença fácil de responder. Poderás dizer logo: claro que sou merecedor. Mas a forma como somos educados e crescemos nesta sociedade, fica de tal forma enraizada nos nossos ossos que precisamos primeiro passar por um processo de muitos rituais de des-formatação (mortes e renascimentos) para depois podermos realmente conseguir responder a esta questão, sentindo que a resposta é nossa e não da sociedade doente de valores.
Acredito que para uma verdadeira liberdade de decisão individual, sobre a eutanásia, deveremos investir mais na educação, informação e empoderamento da população. Devemos investir mais nos Cuidados Paliativos, para que toda a população possa ter acesso aos mesmos, e não apenas uma pequena percentagem. Acreditamos que devemos construir um sistema educativo e de saúde que invista na qualidade de vida da sua população, bem como no apoio aos mais frágeis, para que todos tenham acesso ao direito humano básico do alívio do seu sofrimento (físico, espiritual, emocional, etc.) e nunca ter que se sentir sozinho ao longo da sua vida, e principalmente, nos momentos de grande vulnerabilidade.
A isto se chama construir uma casa pela raiz, com estrutura e laços bem profundos. Não se inicia a construção de uma casa pelo telhado. Sabem porquê?
Ana Catarina Infante
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