Só nós nos podemos sentir a nós mesmos. Sentir o nosso corpo físico. Sentir as nossas emoções. É um facto. E cada vez mais é premente descobrirmos que temos um corpo que sente. Assumir a responsabilidade do que se sente. Dar-lhe voz e espaço para existir em nós e no mundo. Mas será que podemos sentir sozinhos? Será que existimos sozinhos? Mesmo mais isolados, em retiros de silêncio, será que o que sentimos é só nosso? Ou serão, também, partes de interações que já tivemos com outros e que se manifestam em nós? Interações que advêm, por vezes, desde o momento em que crescemos dentro da barriga da nossa mãe, e por aí continuam. E aqui não abordo todas as outras relações não humanas sem as quais também não existiríamos.
Então a interpretação e intenção da palavra auto e o pessoal / individual não serão exatamente explícitos ou corretos no seu individualismo colonizador capitalista, que divide e subdivide a comunidade e a diversidade, porque para além de uma descoberta de nós, o auto é uma descoberta de nós com os outros e através dos outros. Como Ailton Krenak diz, “temos que parar de nos desenvolver e começar a nos envolver. Andamos em constelação.” É impossível, diria eu, não nos envolvermos porque somos em constelação. E pensar o contrário adoece o mundo.
No meu trabalho aquilo que é mais precioso e valioso, principalmente nas situações mais desafiantes da nossa vida, como é a doença e o final de vida, são as relações mais intimas que fomos construindo ao longo da vida. Que escolhemos construir todos os dias, principalmente nos mais desafiantes. Há famílias que verbalizam amo-te. Outras que o manifestam pela presença e preocupação. Relações que, muitas vezes, têm a sua história de conflitos, de personalidades de diferentes pessoas que chocam e neste choque o amor escolhe prevalecer. É a fundação. É a raiz. É a escolha. Não são as conquistas profissionais e os diplomas (que também podem ajudar a materializar quem somos e a contribuir para o mundo que nos deu vida, numa relação de troca com a vida), ou o dinheiro que ganhamos (que pode ajudar em muita coisa, claro). O Amor que se construiu é o que fica, para além de tudo o resto. É o que fica, e foi semeado de nós, frutos, nas pessoas que ainda irão permanecer aqui, neste lindo planeta. Quem fica caminha connosco, ou não, no seu coração. Não caminha com os nossos diplomas.
O crescimento e desenvolvimento “auto-pessoal” acontece nas relações e através delas. Envolvendo-nos. Mergulhando-nos nelas. Quando mergulhamos dentro de nós, mergulhamos fora, com o/os outros, e quando mergulhamos fora, mergulhamos dentro.
Ontem, ao falar com a minha irmã, lembrámos este exercício: se desligássemos o telefone dois dias, sem aviso prévio, quem sentes que se poderia preocupar contigo? Talvez se sentirmos que não falamos com alguém importante há algum tempo, seja tempo para reestabelecer esse vínculo.
Temos tantos fazeres no nosso dia, tantas preocupações, tantas coisas a conquistar, perpetuando o espírito do conquistador ferido, que por vezes, aquilo que é mais fundamental, básico, os alicerces da Vida e plenitude, as relações, sejam elas quais forem, adoecem, tal como nós. Sermos especiais na vida de alguém, não é uma manobra narcisista. É uma pegada do legado do Amor. Tal como quando a abelha beija a flor e leva o seu pólen ao mundo. A flor é o expoente mais do que especial da abelha e um legado para o mundo. Tal como a flor. Assim é, o rasto, o legado, das relações mais íntimas e especiais. Pessoas que nos abraçam nas nossas sombras, e não apenas quando sorrimos. E isso perpetua no mundo, como o pólen.
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