A morte (a nossa) que germina o nosso regresso ao mundo, depois da morte de quem amamos
Quando alguém que amamos morre, partes de nós, muitas partes de nós, morrem também.
O nosso corpo guarda as memórias de quem partiu (cheiros, sons, toques, emoções, recordações várias, sonhos, projetos,...). Mesmo quando se trata da morte de uma semente, dentro da barriga da sua mãe, que nunca chegou a vingar na terra. Quando essa pessoa começa a “desaparecer” e desaparece, o nosso corpo sofre convulsões da abstinência. Dói. Muito. É-nos pedida, na sua ausência, uma mudança de pele que não queremos fazer. Que resistimos em cumprir. Isso implica “aceitar” que “perdemos” o outro que amamos. Que aceitamos “perder”. Que a sua memória irá desvanecer de dentro de nós. Que respeitamos a sua ausência. Assim, lutamos contra todas as nossas forças para manter a dor. Mantendo a sua presença. Não deixando que esta se transforme. Mantemos a dor que nos liga ao outro na incompreensão, zanga, culpa, tristeza, revolta, depressão, da sua ausência. A dor da inexistência de quem somos sem ela. Durante algum tempo, este caminho, das profundezas da nossa alma, faz parte. Não vai correr tudo bem...Vamos mesmo afundar-nos no lodo e ter dificuldade em respirar. Temos medo. Queremos morrer com o outro. E, de facto, morremos também. Porque não é só o corpo físico que nos morre.
No podcast com o Luís Quintino, ele conta como foi criticado, por algumas pessoas, por escrever um livro a falar sobre o trajeto de doença, de vida e morte do filho. Foi criticada, também, a escolha do nome do livro. Ele escolheu a palavra Amor e esta nunca poderia estar associada à demanda que o Luís fez quando o seu coração estava dilacerado, de acordo com algumas pessoas. “O Luto é o oposto do Amor” como já ouvi dizer. Não é suposto sair dele intacto. É um facto. Deixamos de ser as pessoas que éramos para nos transformarmos em algo diferente. Somos, durante algum tempo, estilhaços. Dizer que a morte faz parte da vida não é suficiente para nos amenizar a cruel dor que sentimos. Mas, as leis do Amor da Vida são comuns a todos os seres.
Somos uma rede em movimento constante. Mas os seres humanos, na sua imensa capacidade racional, têm o poder da escolha. A vida empurra-nos para a mudança, quer queiramos ou não. Podemos resistir, mais ou menos tempo, mas ela vai sempre seguir o seu caminho dentro de nós, através de nós. Podemos ficar no lodo ou escolher, juntamente com a dor dilacerante, como um pincel, um cinzel se tratasse, procurar uma nova forma de estar no mundo. Converter a dor em mais Amor e arte no mundo. Ela tem a capacidade de nos abrir o coração para a imensa compaixão e ligação à rede da vida e a todos os seres. Pouquinho a pouquinho. A conta gotas. Homeopaticamente. Como no trauma. Com apoio. Em comunidade. Escolher conectar-nos ainda mais. Escolher Amar ainda mais. Estar Presente para a Vida ainda mais. Porque escolher o contrário é ficar no lodo do mundo. E, infelizmente, vejo muitas pessoas neste lugar.
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